CITAÇÃO, APROPRIAÇÃO, SIMULAÇÃO: a prática pictórica da década de 1980 e o repertório de imagens da história da arte | WAGNER JONASSON DA COSTA LIMA

español

A década de 1980 foi intensamente marcada pela revitalização da pintura, após um considerável período de experimentação de meios, suportes e materiais não convencionais que vigorou nas décadas de 1960 e 1970. O fenômeno ganhou ampla visibilidade através da realização de um número expressivo de exposições internacionais que defenderam a volta do fazer pictórico, legitimando uma tendência que alcançaria notoriedade no meio mundial de arte [1]. Dentre as mais relevantes, pode-se destacar a exposição A New Spirit in Painting, realizada em Londres, entre janeiro e março de 1981, pela Royal Academy of Art, e organizada pelos críticos e curadores Christos Joachimedes (1932-), Norman Rosenthal (1944-) e Nicholas Serota (1946-). Com o propósito de reafirmar e promover a relevância da pintura na contemporaneidade, a exposição reuniu jovens artistas italianos, alemães e norte-americanos, assim como pintores de trajetória já consolidada, como Philip Guston (1913-1980), Willem De Kooning (1904-1997), Robeto Matta (1911-2002) entre outros.

O "redescobrimento" do "significado contemporâneo" da prática pictórica, reivindicado pelos curadores [2], foi pautado em oposição ao tom demasiadamente cerebral das tendências minimalistas e conceituais, considerando o retorno ao instrumental da pintura como um meio de recuperar a subjetividade do artista e do público. Ao mesmo tempo, a exposição londrina procurou observar a constância de uma prática que governava a pintura da década de 1980, marcadamente interessada por submeter o passado a processos de bcitaçãob. Verifica-se, desse modo, uma parcela considerável de artistas elegeram a pintura como veículo privilegiado, empreendendo uma investigação a partir do repertório de imagens da história da arte, pré-modernista e modernista. As imagens são então confiscadas e submetidas a novos sistemas visuais, o que reforçaria a importância do procedimento no contexto da produção pictórica do período.

Na Itália, o desenvolvimento da prática "citacionista" ganhou contornos particulares, especialmente na produção de artistas como Sandro Chia (1946-), Mimmo Paladino (1948-), Enzo Cucchi (1950-), Francesco Clemente (1952-) e Nicola de Maria (1954-). Agrupados sob o rótulo de "Transvanguarda Italiana", tais artistas não constituíram propriamente um movimento, mas compartilharam constantes referências à iconografia da história da arte, notadamente aquela pertencente à cultura figurativa italiana. Artistas como Michelangelo (1475-1564), Ticiano (1473/1490-1576), Tintoretto (1518-1594), constituíram uma fonte importante para Sandro Chia, cuja pintura baseou-se na "manipulação acrobática de códigos diferentes, simultaneamente visitados e saqueados e, depois, encadeados um ao outro." [3] Esse embaralhamento da tradição não excluiu artistas como Cézzane (1839-1906), Chagall (1887-1985), Picasso (1881-1973), além da pintura metafísica de Giorgio de Chirico (1888-1978).

.

Water Bearer
Sandro Chia, Water Bearer, 1981, óleo e pastel sobre tela, 206.5 x 170 cm. Acervo Tate Gallery, Londres .

A expressão "citazionista" foi utilizada, em 1967, pelo historiador e crítico de arte italiano Renato Barilli (1935-), para qualificar a produção do pintor espanhol Eduardo Arroyo (1937-). Barilli foi igualmente responsável pela curadoria da primeira exposição significativa que chamou a atenção para a prática, realizada no Studio Marconi de Milão, no outono de 1974, e que ostentou o título de La ripetizione differente. A mostra reuniu a produção de diferentes artistas que compartilhavam, de acordo com o crítico, a consciência de estar na "situação limite daqueles que chegaram ao final de um caminho para além do qual não se pode continuar, pelo menos em sentido linear e mantendo a mesma lógica de viagem" [4]. Para Barilli, essa situação era determinada pela sensação de que as reservas do bnovob estavam diminuindo gradualmente; bem como pela atuação dos meios de comunicação de massa, que rompiam as barreiras do espaço e da geografia, do tempo e da história.

Já o termo "transvanguarda", anteriormente mencionado, entrou para o vocabulário crítico e teórico das artes visuais a partir da atuação do crítico italiano Achille Bonito Oliva (1939-), responsável pela concepção e promoção da tendência italiana. Inicialmente, o crítico procurou definir uma identidade teórica para o grupo de jovens artistas que agregou em torno de si, batizando-os de "Transvanguarda Italiana" [5]. Em 1982, expandiu suas avaliações para o meio de arte ocidental como um todo, definindo então o que chamou de "Transvanguarda Internacional" [6]. Essa tendência, na visão de Oliva, era assinalada pelo livre uso de referências disponíveis na história da arte e na cultura como um todo, em um constante trânsito por diferentes linguagens e estilos do passado. O crítico procurou, assim, desabilitar a ideia de vanguarda, afirmando que não havia mais um desenvolvimento progressivo da história da arte.

Ainda que Oliva não apresentasse em seus textos uma referência direta ao bpós-modernismob, suas argumentações não deixaram de participar das discussões que gravitavam em torno do conceito - em voga nos debates sobre arte e cultura nas décadas de 1970 e 1980. De uma forma geral, a sensibilidade dita "pós-moderna" dirige suas forças para o questionamento sistemático de parâmetros modernistas, como as noções de identidade e autoria, ou mesmo de ruptura, novo ou vanguarda. Outro assunto crucial dessa agenda refere-se ao rompimento da divisão categórica entre as chamadas "cultura erudita" e "cultura de massa", discurso predominante da estética modernista nas duas décadas que se seguem à Segunda Guerra Mundial. [7] A título de exemplo, pode-se mencionar o ensaio "Vanguarda e kitsch", publicado em 1939, onde o crítico de arte norte-americano Clement Greenberg (1909-1994) estabeleceu uma vigorosa declaração de defesa da esfera da arte culta em oposição à invasão do kitsch e da civilização vulgarizada no interior do capitalismo industrial [8].

Embora a origem da ideia de "modernismo" como qualidade e valor relativos à experiência e à cultura possa ser situada na França do século XIX, a ressonância especial que o termo adquiriu deve muito aos escritos de Greenberg. Cabe-lhe o papel de destaque devido ao alcance de sua versão da história da arte modernista no contexto da arte norte-americana e da arte europeia ocidental da década de 1960. Pode-se considerar que a afirmação central do modernismo, no sentido que Greenberg atribuiu ao termo, em seu ensaio bPintura Modernistab (1960), diz respeito C autonomia da arte e C sua especificidade dos meios: "A essência do modernismo, tal como o vejo, reside no uso de métodos característicos de uma disciplina para criticar essa disciplina, não no intuito de subvertê-la, mas para entrincheirá-la mais firmemente em sua área de competência." [9] A prática modernista foi baseada, desse modo, no estreitamento dos artistas no meio que escolheram, que, na pintura, seria a superfície e o espaço bidimensionais da tela e do quadro que a encerra.

Entretanto, no decorrer da década de 1950, artistas como Robert Rauschenberg (1925-2008) e Jasper Johns (1930-), trataram de modo diferente esse legado - notadamente aquele vinculado ao Expressionismo Abstrato - colocando em questão noções como a de autonomia e originalidade. O trabalho de Rauschenberg sinalizou, conforme o historiador e crítico de arte Leo Steinberg, a emergência do "plano do quadro do tipo flatbed" [10], constituído por uma superfície com a disponibilidade suficiente para receber uma grande quantidade de imagens e artefatos culturais. O plano do quadro, nesse caso, faz uma alusão simbólica a superfícies como tampos de mesa ou quadros de aviso, ou seja, qualquer superfície em que objetos são espalhados e informações podem ser impressas ou estampadas. As imagens dos primeiros quadros de Jasper Johns pertencem a essa classe; o mesmo se dá com a maior parte da arte Pop, onde "o quadro é concebido como a imagem de uma imagem" [11].

As transgressões à distinção entre "alta" e "baixa" cultura também se tornaram frequentes em grande parte da chamada barte de apropriaçãob que vigorou na década de 1980. Em geral, de acordo com Harrison e Wood, "isso significava elevar os produtos da cultura popular e do desenho industrial aos contextos artísticos, com vistas a subverter a autoridade da arte" [12]. Ainda que o termo "apropriação" obrigue a consideração de procedimentos comuns às vanguardas históricas - especialmente o ready-made de Marcel Duchamp (1887-1968) - a sua incorporação ao vocabulário crítico esteve nitidamente associada a determinados artistas norte-americanos da década de 1980, sobretudo Sherrie Levine (1947-) e aqueles reunidos sob o rótulo de "Simulacionismo", como Peter Halley (1953-), Ashley Bickerton (1959-) e Jeff Koons (1955-). Na produção desses artistas, o otimismo diante dos novos meios e da cultura de massas - presente nas propostas artísticas da década de 1960 - foi substituído por julgamentos baseados nas teorias bpós-estruturalistasb da textualidade, do sujeito e da realidade.

Noções como a de "morte do autor", postulada por Roland Barthes (1915-1980), gozaram de grande prestígio entre os jovens artistas e críticos norte-americanos em meados da década de 1980. Em seu ensaio "A morte do autor", publicado em 1968, Barthes alegou que "um texto não é feito de uma linha de palavras a produzir um sentido único, de certa maneira teológica (que seria a mensagem do Autor-Deus), mas um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escrituras variadas das quais nenhum é original: o texto é um tecido de citações, saídas de mil focos da cultura." [13] A tese de que o autor está fora do espaço textual é, antes, um convite para encarar a escrita como um campo neutro, responsável pela dissolução do sujeito, perda da identidade e aniquilamento de toda a voz. No fim, o texto é criado não pelo autor, mas pelo leitor que se envolve com ele.

A produção de Levine, no início da década de 1980, consistia em refotografar imagens encontradas em livros e revistas de autoria de fotógrafos ilustres, como Edward Weston (1886-1958) e Walter Ewans (1903-1975). "Ao roubar descaradamente imagens já existentes", escreveu o crítico Douglas Crimp, "Levine não faz nenhuma concessão às noções convencionais de criatividade artística. Ela faz uso das imagens, mas não para constituir um estilo próprio." [14] Levando adiante o gesto de apropriação duchampiano, o fio condutor da atitude de Levine deve ser buscado na compreensão de que toda obra é um btecido de citaçõesb, uma rede de significantes entrelaçados. Desse modo, a artista coloca em risco as noções de autoria, obra e originalidade; bem como traz para o primeiro plano a centralidade da fotografia como uma ameaça à autonomia da arte, dado que a sua multiplicidade escapa às tradicionais definições da arte baseadas nos conceitos de raridade e valor.

No fim da década de 1980, Levine apresentou uma série de pinturas, realizadas com caseína e cera sobre madeira, que evocavam a aparência geral da abstração modernista, sem fundamentá-la, contudo, em qualquer período histórico ou artista específico. Essa atitude transformava tais trabalhos, de acordo com o vocabulário da época, em bsimulaçõesb - noção vinculada aos escritos de Jean Baudrillard (1929-2007), que exerceram forte impacto sobre os artistas no período. Em lugar de procurar entender e aplicar as relações formais subjacentes nas formas geométricas, Levine procurou rastrear as tradições intelectuais da modernidade. As formas geométricas da arte moderna estão aqui por seu simbolismo e suas referências culturais, em contraposição ao formalismo auto reflexivo da abordagem modernista ortodoxa. .
 

pintura_levine
Sherrie Levine, Large Check: 10, 1987, caseína e cera sobre madeira, 61 x 50.8 cm. Acervo The Museum of Modern Art, New York .

A tradição modernista da abstração geométrica também se tornou material para as pinturas de Peter Halley, constituídas por motivos como "prisões" e "células" realizados com tinta acrílica fluorescente sobre uma superfície que simulava o estuque. Criticando o que ele chamava de "obsessão moderna com a geometria" [15], Halley apresentou suas pinturas como modelos visuais das redes de circulação e movimento mecânico da sociedade pós-industrial. Acreditava estar descrevendo um novo tipo de espaço social, espaço esse semelhante, segundo ele, ao "espaço simulado do videogame, do microchip e dos prédios de escritório" [16]. O artista sugeriu, desse modo, que a abstração modernista havia sido esvaziada de suas aspirações utópicas. Logo, foi posicionada onde seus defensores desde o início receavam que pudesse cair: no lugar do design, da decoração e até do kitsch. .

pintura_halley
Peter Halley, Prison with Conduit, 1981, tinta acrílica Day-Glo e estuque Roll-a-Tex sobre tela, 137.2 x 91.4 cm. Imagem disponível em: http://www.peterhalley.com

Na década de 1980, uma parcela considerável de artistas reduziu deliberadamente seu espaço de atuação ao espaço da tela, admitindo a manipulação de imagens, estilos e modos pré-existentes. Essas obras adotaram uma distância irônica em relação a essa tradição e a trataram como um estoque de ready-mades a serem apropriados. Em decorrência do fluxo contínuo de imagens e representações investidas num crescente processo generalizado de espetacularização da sociedade, os artistas misturaram múltiplos modos de representação extraídos de fontes diversas, que se chocam de uma forma que estimulam e, ao mesmo tempo, frustram os esforços do observador na tentativa de estabelecer associações significativas. Essa produção é marcada pela atitude consciente em relação ao fim dos parâmetros que definiram a modernidade e pelo fato de que a pintura ocorre hoje no contexto da tradição visual mais geral e disseminada da reprodução mecânica.  

[1] De acordo com a pesquisadora Anna Maria Guash, "para a pós-modernidade, as exposições são o que na definição e legitimação das vanguardas históricas, do futurismo ao surrealismo, foram os manifestos e o que para as neovanguardas surgidas depois da II Guerra Mundial representam os discursos de historiadores e, particularmente dos críticos." GUASCH, Anna Maria (org.). Los manifiestos del arte posmoderno: textos de exposiciones, 1980-1995. Madrid: Akal Editorial, 2000. p. 5.

[2] Cf. JOACHIMIDES, Christos M. Un nuevo espíritu em la pintura. In: GUASCH, Anna Maria (org.). Los manifiestos del arte posmoderno: textos de exposiciones, 1980-1995. Madrid: Akal Editorial, 2000. p. 13-17.

[3] MANTURA, Bruno. Artistas italianos na 17ª Bienal de São Paulo. In: Catálogo Geral da 17ª Bienal de São Paulo. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1983. p. 34.

[4] BARILLI, Renato. La ripetizione differente. Milano: Studio Marconi, 1974.

[5] OLIVA, Achille Bonito. La trans-avanguardia italiana. In: Flash Art, n. 92-93, p. 17-20, 1979.

[6] Id., The internacional trans-avant-garde. In: Flash Art International, n. 104, p. 36-43, 1982.

[7] HUYSSEN, Andreas. Mapeando o pós-moderno. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Pós-modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. p. 15-80.

[8] "O kitsch, que usa como matéria prima os simulacros aviltados e academicizados da cultura genuína, vê com bons olhos e cultiva essa insensibilidade, que é a fonte de seus lucros. O kitsch é mecânico e funciona mediante fórmulas." GREENBERG, Clement. Vanguarda e kitsch. In: FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecília (Orgs.). Clement Greenberg e o debate crítico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. p. 32.

[9] GREENBERG, Clement. Pintura modernista. In: FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecília (Orgs.). Clement Greenberg e o debate crítico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. p. 101.

[10] STEINBERG, Leo. Outros critérios: confrontos com a arte do século XX. São Paulo: Cosac & Naify, 2008. p. 117.

[11] Ibid., p. 125.

[12] HARRISON, Charles; WOOD, Paul. Modernidade e modernismo reconsiderados. In: WOOD, Paul et al. Modernismo em disputa: a arte desde os anos quarenta. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. p. 241.

[13] BARTHES, Roland. A morte do autor. In: ______. O rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 1988. p. 68-69.

[14] CRIMP, Douglas. Apropriando-se da apropriação. In: ______. Sobre as ruínas do museu. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 121.

[15] HALLEY, Peter. The crisis in geometry. Arts Magazine, New York, Vol. 58, No. 10, Junho 1984. Disponível em: http://www.peterhalley.com/. Acesso em: Março de 2014.

[16] Ibid.

***

Wagner Jonasson da Costa Lima. Doutorando em Artes Visuais pelo Programa de Pós-graduação do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina; mestrado em Artes Visuais pela Universidade do Estado de Santa Catarina e graduação em Superior de Pintura pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná.